“O respeito pelas Tradições criadas pelos nossos antepassados é a atitude mais humilde que o povo tem para recordar quem já partiu.”
A Páscoa para os judeus significa a “passagem” da condição de escravos para a liberdade, enquanto que, para o povo cristão significa a “passagem” da condição de pecadores para a graça e para a vida eterna. Para outros, a Páscoa é sinónimo de amêndoas, ovos e coelhos de chocolate ou ainda pode ser encarada como mais dois ou três dias de descanso a ver televisão ou realizar uma “escapadinha” à praia ou à serra. No “coração” da Loiça Preta de Molelos, na Raposeiras, este acontecimento é vivido intensamente e de forma diferente. A Páscoa é sinónimo de tradição, recordações, respeito, convívio e amizade.
Que eu tenha conhecimento nada existe escrito aprofundadamente sobre a Páscoa da Raposeiras. Assim, ao longo dos últimos dias fui falando com as pessoas mais idosas deste local para entender efectivamente como esta tradição começou e evoluiu. Pelo que consegui apurar a tradição da Páscoa na Raposeiras tem mais de 70 anos, e tudo começou quando foram lançados foguetes que comemoravam o anúncio de um determinado casamento.
Na Páscoa seguinte, alguns jovens solteiros organizaram-se e efectuaram um peditório, casa a casa, para a compra de foguetes, a lançar durante o sábado, domingo e segunda-feira de Páscoa. Existem fortes evidências, que quem iniciou esta prática foi a família de Alexandre Marques Coimbra (já falecido), sendo este o responsável pela afirmação do lançamento de foguetes durante a Páscoa na Raposeiras. Existem relatos que descrevem que este Homem se deslocou à Lageosa do Dão, a pé, trazendo consigo os foguetes a lançar nesta época festiva. Mais tarde o transporte era efectuado em motociclos a partir de Santa Ovaia e posteriormente de Nespereira Alta.
A Festa iniciava-se três a quatro semanas antes do dia de Páscoa com o peditório efectuado pelos rapazes solteiros. O donativo mais elevado rondava os quinze escudos, que apenas permitia adquirir meia dúzia de foguetes de tiro ou estalaria. Por outro lado as raparigas solteiras ficavam incumbidas de fazer as flores em papel para o baile a realizar na segunda-feira de Páscoa. Estes momentos eram aproveitados sorrateiramente pelos rapazes solteiros para se aproximarem delas permitindo arranjarem o par ideal para o baile e/ou para vida.
A noite de Páscoa era caracterizada pelo lançamento de foguetes de hora em hora, ouvia-se o toque dos sons das serrações existentes, sentia-se o toque dos sinos da igreja, pairava o toque da sirene dos bombeiros e atormentava-se as ruas a toque de bombos. Daí eu dizer que hoje, a Páscoa é sinónimo de respeito, uma vez que se abdicou deste modo de passar o tempo. A noite ainda ficava marcada pelos sons das concertinas e consequentes desgarradas, assim como da passagem obrigatória por determinadas casas que aguardavam a chegada dos rapazes solteiros para petiscar e beber um copo de vinho, anis ou aguardente. A diversão era tal que vinham rapazes solteiros (e alguns casados) do Casal, do Pelourinho, do Alto Pina, da Pedra da Vista, da Ribeira, Nandufe e até de Campo de Besteiros para pernoitar no “coração” da Loiça Preta de Molelos.
Pelas seis da manhã de domingo iniciava-se a primeira descarga de foguetes seguida de uma passagem pela tasca do “Ti Aires” e posteriormente pelo café para acomodar o estômago com doces oferecidos pelos seus proprietários. Seguia-se um jogo de futebol no campo das Relva-Fondeiras com casados contra solteiros que terminava quando as pernas já não aguentavam mais ou quando o empate sucedia, sendo este do agrado de ambas as partes.
Durante a visita pascal, à tarde, eram lançados foguetes. Na segunda-feira de Páscoa realizava-se junto à laje que existia em redor do Café S. Carlos um baile de Páscoa. Consta-se que os melhores grupos musicais de então (os Andorinhas, os Melros e os Perus) abrilhantavam a noite para a satisfação dos presentes. O último baile de Páscoa que se realizou foi à 22/23 anos, onde actuou o grupo “Alvará”.
Actualmente, a Páscoa é vivida intensamente mas alguns hábitos foram se perdendo no tempo. No dia seguinte ao Dia do Sr. dos Aflitos (quinze dias antes da Páscoa), os solteiros iniciam um peditório casa a casa com início no Alto da Raposeiras até a estrada principal de Molelos. Em seguida efectua-se o mesmo procedimento na zona do Machorro.
Os rapazes solteiros são recebidos de “braços abertos” pelo povo. Que gente tão humilde e hospitaleira, esta malta das Raposeiras. Respira-se alegria, amizade e proximidade. Sente-se um orgulho imenso em viver aqui.
No Sábado Santo, normalmente os jovens rumam à feira semanal para verificarem as últimas tendências! A seguir ao almoço é lançado um foguete no alto Raposeiras para chamar os mais novos para a preparação do espaço, onde se realiza habitualmente um porco no espeto que dura até altas horas da madrugada. Prevalece o espírito de camaradagem e recordam-se as aventuras do passado. Come-se, aprecia-se, comenta-se e juntam-se os amigos para passar mais uma noite de Páscoa. São todos bem-vindos à Terra da Loiça Preta. Chegada a meia-noite são lançados foguetes para anunciar o descanso nocturno.
A rebeldia característica dos jovens fazem-nos pernoitar por ali. Quem não aprecia são as esposas e namoradas que não entendem a imensa paixão por esta tradição. Nascemos e crescemos envolvido no cheiro da pólvora e sentimos prazer em ouvir estoirar os foguetes. Prometemos que para o ano vamos dormir, mas existe uma forte vontade de não cumprir.
Pelas seis da manhã inicia-se o processo de transferência dos foguetes até ao local de descarga e começa-se a delinear a ordem de lançamento. São lançados 4/5 foguetes em diferentes pontos da Raposeiras.
Às sete horas, em ponto, inicia-se a descarga com um foguete de estalaria seguido de vinte e um foguetes de tiro. Posteriormente realiza-se uma descarga de foguetes que tem a duração aproximada de duas horas. Da parte da tarde, durante a visita Pascal são lançados oito dúzias de foguetes que alegram as ruas desta localidade.
Os foguetes acompanham o Nosso Senhor. Estes são os ponteiros que permitem a assiduidade. Quando é lançado um foguete a 100 metros de casa, o Sr. Padre está perto. Abrem-se as portas e recebe-se o Senhor.
Passada a cruz na Raposeira, terminam os foguetes, acabou-se a Páscoa. Findou-se mais um ano em que tudo correu bem. Regressa-se a casa e recupera-se o corpo estafado.
Estas vivências contribuem para o engrandecimento dos valores de proximidade, vizinhança e orgulho nas nossas tradições e na nossa Terra.
A juventude da Raposeiras nasceu e cresceu envolvida nesta tradição.
Temos como lema o respeito e a humildade.
Esta juventude é demasiado orgulhosos para desistir desta tradição.
Assim, informam-se Todos os interessados que a Páscoa para o ano decorrerá no dia 4 de Abril e os responsáveis por esta iniciativa irão distribuir “tampões” para os ouvidos para as pessoas mais sensíveis de forma a agradar a Todos.
Humildemente agradecemos a todos que contribuíram para a realização de mais uma Páscoa, ficando a promessa que para o ano, a alvorada será realizada o mais cedo quanto possível, dependendo da legislação em vigor.
Um Abraço a Todos, principalmente aos emigrantes que gostariam de partilhar esta Páscoa junto dos seus familiares e amigos. Fica a promessa que para o ano há mais “fogo pó ar…”.
NOTA: BREVEMENTE FOTOS DA PÀSCOA DA RAPOSEIRAS